Na maior parte das vezes, a iguaria é consumida frita, sendo utilizada como ingrediente principal para o preparo de farofa de tanajura.
Por Leonardo Igor de Sousa, g1 CE
Hábito de comer tanajura, conhecida como saúva, é herança indígena até hoje presente em várias comunidades pelo Brasil — Foto: Globo Repórter
Em 13 de julho de 1553, desembarcou em Salvador o padre jesuíta José de Anchieta, considerado hoje um dos primeiros escritores da literatura brasileira. Em sua convivência com os povos indígenas no Brasil, um dos hábitos que lhe chamou atenção - e do qual ele provou foi o de coletar e comer as chamadas içás, conhecidas em parte do Brasil como saúvas e no Ceará como tanajuras.
Ainda agora, o hábito de comer tanajura, observado nos tempos da colônia, segue preservado no Ceará na região da Serra da Ibiapaba, onde estão municípios como Ubajara, Tianguá, Ibiapina, São Benedito, Viçosa do Ceará, entre outros.
As tanajuras (Atta cephalotes) são uma espécie de formiga com asas e com o abdômen pronunciado. Elas costumam aparecer no período chuvosa, na época chamada de revoada, quando elas deixam o solo úmido da chuva. Neste período, elas se reproduzem e formam uma nova colônia, um no novo lar, em um espaço mais seco.
É neste período que muita gente aproveita para coletar os espécimes e prepará-los para o consumo. Na maior parte das vezes, a iguaria é consumida frita, sendo utilizada como ingrediente principal para o preparo de farofa de tanajura.
“Quando tem uma boa chuva com trovão e no dia seguinte faz um sol quente que começa a sair [tanajura], você vê um monte de gente na rua. Quem pode vai para os sítios, quem tem a coragem de entrar nos formigueiros, coloca bota e tudo para poder ir pegar”, conta a nutricionista Lídia Sousa, moradora do município de Ibiapina, na Serra da Ibiapaba.
Lídia nasceu no Distrito Federal, mas seus pais são cearenses da região da Ibiapaba. Ela conta que vive em Ibiapina há cerca de 15 anos, mas já tinha o hábito de comer tanajuras desde pequena na capital federal.
No Distrito Federal, ela e a família moravam em uma chácara, por isso conseguiam capturar as tanajuras no período de chuvas. “Lá mesmo ninguém consumia, pessoal inclusive achava engraçado, julgava, dizia que a gente tava comendo formiga”, relembra.
“A gente sempre falou 'é muito bom, quer experimentar?'. O pessoal sempre tem aquela aversão, como nojo mesmo. Lá em Brasília, quando a gente oferecia pros amigos, eles até chegavam a experimentar, mas aí cuspia, dizia que era nojento. Mas quem se abre mesmo para experimentar gosta”, afirma.
Tanajura possui asas e tem o abdômen crescido, sendo esta última parte a favorita de quem come a formiga — Foto: Globo Repórter
Comer tanajura: um hábito transmitido há décadas
Na Serra da Ibiapiaba, se alguém perguntar de onde vem o hábito de comer tanajuras, diferentes versões vão surgir. Hoje, no entanto, especialistas concordam que o hábito é uma herança do povo indígena Tabajara, que habita na região.
“É um hábito comum e ancestral, vem da cultura indígena. Tem muitas regiões do Brasil que se comem insetos, desde formigas, que são as mais comuns, larvas, e outros tipos de insetos”, explica o professor Paulo Henrique Machado, do curso de Gastronomia da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Machado integra um grupo na universidade que estuda a entomofagia, que é o consumo de insetos como alimentos. O professor aponta que a prática pode ser encontrada em várias comunidades do Brasil.
“E não só o inseto, mas produtos dele, no caso do mel da abelha, da cochonilha que produz corante vermelho, mais para rosado. E tem muitos produtos mesmo industrializados. Então é um hábito comum que às vezes a gente não sabe”, destaca.
Na Ibiapaba, após a coleta da formiga, tem início a seleção do “filé”, quando são retiradas as asas, ferrões e a “cabeça”, mantendo apenas o abdômen, popularmente chamado de bumbum.
Muitos moradores aproveitam a revoada para capturar dezenas de tanajuras, retirar o abdômen, congelar e engarrafar. Depois, elas são vendidas em garrafas. Em Ibiapina, uma garrafa de um litro de tanajuras chega a custar R$ 80, conforme Lídia Sousa.
“As pessoas pagam para consumir a tanajura. E às vezes congelam para vender no carnaval, porque no carnaval também tem muita gente que gosta de comprar para fazer como tira-gosto, tá ali bebendo alguma coisa e faz com a tanajura frita”, aponta a nutricionista.
Muitas vezes, tanajura é frita com manteiga ou óleo e sal e servida com farofa — Foto: Paula Cavalcante/G1
O mais conhecido e mais tradicional modo de consumir a tanajura é com a farofa. Mas isso pode mudar de conforme a preferência de quem degusta.
“Tem gente que consome ela toda, inteira, mastiga e engole. Tem gente que só come o bumbum [abdômen], que é a parte que tem mais proteína; e tem gente também que engole tudo e tem gente que mastiga, suga o sabor e cospe o bagaço, que seria a casquinha dela”, afirma Lídia.
Do ponto de vista nutricional, a tanajura é considerada um alimento com altas concentrações de lipídios e proteínas, de acordo com análise feita em laboratório pelo professor Paulo Henrique Machado e outros dois colegas da UFC.
A pesquisa, publicada em 2020, indicou que a tanajura tem um perfil de ácidos graxos majoritariamente composto de ácidos graxos monoinsaturados, semelhante a carnes de boi e de porco, “enriquecendo a dieta daqueles que as ingerem”.
Insetos são fonte alternativa de alimentação
A alta concentração de proteínas nas tanajuras não é uma exceção entre insetos. Justamente pelos nutrientes que podem ser encontrados neles, existem várias iniciativas para incentivar o consumo de insetos como alternativa para alimentação.
“Tanto ele é um produto que tem um benefício para o ambiente, em comparação com outros tipos de proteína, como de gado, porque diminui impacto ambiental na camada de ozônio, diminui o consumo de água, o maltrato do solo. Mas com relação a nutrição, a gente sabe que eles têm um grande teor de proteína, alguns minerais, alguns ácidos graxos também, que tem algumas gorduras que são benéficas para o nosso organismo. Então eles têm várias vantagens”, aponta o professor Paulo Henrique Machado.
Conforme o docente, a criação de insetos para consumo em larga escala, em cativeiros, apresenta uma produtividade maior do que a do gado ou do frango, com um espaço menor de produção.
Na UFC, a startup Protomega, criada por estudantes, está desenvolvendo um trabalho voltado para o processamento de insetos em itens alimentícios. Utilizando larvas de tenébrio, conhecidas como larva-da-farinha, eles produzem azeite e farinha.
Receita preparada a partir de insumos feitos com insetos pela startup Protomega, criada na UFC — Foto: Divulgação/Protomega
No momento, o projeto é voltado para o mercado exterior, uma vez que o Brasil, por enquanto, proíbe a comercialização de alimentos à base de insetos. Machado, no entanto, acredita que o consumo destes itens tem espaço para crescer, no Brasil e em outros lugares.
“Se o consumidor, e já tem pesquisa mostrando isso, se consumidor não ver o inseto inteiro, ele tem mais propensão a querer consumir aquilo. Então, por exemplo, na farinha, ele fica parecendo uma farinha integral. A gente já tem feito panqueca a partir dele, pode fazer cookie, bolo. Então ele pode entrar e substituir uma parte do outro alimento, no caso de uma farinha, dentro daquela receita”, afirma.
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